sexta-feira, abril 14, 2023

A Nau dos Insensatos: Morte e Massacre nas Escolas.



        Publicado em 1494, o poema Navis Stultifera, de Sebastian Brant, retratava a embarcação que, atolada de inconsequentes, glutões, doidivanos, preguiçosos e avarentos, dirigia-se rigorosamente a uma ilha chamada “Insensatez”. Foucault, na História da Loucura, retoma a imagem da nau, e a alegoriza para descrever o macabro itinerário dos indivíduos indesejados na Idade Média. Dos manicômios, hospitais e leprosários, essas criaturas eram constantemente segregadas do convívio social. Feiticeiras, hereges, vadios e embriagados, vagariam portanto sobre as águas, desaparecidos. A loucura, que para Foucault, não seria unicamente uma ilustração histórica, e sim, substancialmente uma experiência originária e essencial, que a razão, a compreensão e a realidade, ao invés de descobrir, ocultou, omitiu, pensou ter calado e dominado. Mas jamais a destruiu completamente, deixando-a perigosa e enfurecida. 

            Denunciada por Nietzsche, a Sociedade Socrática, amoriscada e fascinada pelo espírito científico e racional, fez-nos espectadores do nascimento da tragédia, que por ora, degustaria a repressão e o sufocamento que apressadamente viria através dos peritos e teóricos da lógica e da racionalização. 

            Se por um lado somos cotidianamente delirantes, imprudentes e imoderados, por outro amargamos aprisionados a condição de reféns da insensatez, da insanidade. O absurdo é arte, e dele nada podemos prever. Não há prenúncio ou conjecturas. Nada foi subtraído ou vandalizado. Não há formação de quadrilha, planos, estelionatos ou golpes. Estamos diante de um evidente e inteligível sintoma de nossa própria liberdade, como fugitivos das amarras morais e lúcidas. A expressão simbólica dos conflitos e traumas individuais, ganha potência bélica com o consentimento da massa. 

            A sociedade das curtidas e views capta impiedosamente os que buscam o reconhecimento. Do ressentimento, da invisibilidade e do tédio, nascem os indômitos e hediondos, que arremessam o próprio corpo, junto da alma, em um compreensível abismo de fúria e disparate. A polícia não os pode deter. O exército não os pode bloquear, tampouco as políticas públicas têm comando suficiente para encostar na consciência e no ímpeto. 
            A banalidade do mal há de sentar à mesa, e depois de alguns anos em que permitimos, como corpo social, o discurso beligerante, zangado e odioso, essa banalidade há de ser nosso alimento. Estamos com o prato lotado, a faca e o queijo na mão. Proselitismo Marxista, guerra cultural e inúmeros pretextos desatinados e levianos, confundem e congregam os devotos, que dispostos a sacrificar seu anonimato, aniquilam. A si, ao outro e à coerência. 

            Não há insensatez trancafiada em uma embarcação. Nem barco capaz de carregar o desvario dos lares. A extravagância foi celebrada, e trará suas instalações, em escolas, creches, cinemas e circos. A exteriorização da crueldade, quando acompanhada de fuzis, pistolas, facas e espadas, nos servirá catástrofes, maiores do que nossos próprios traumas e conflitos psicanalíticos. E mesmo que o jornalismo pratique sua ética dissimulada, evitando a propaganda do assassino, o medo de nossa própria capacidade trancafiará os exércitos de triviais em suas casas. No quarto ao lado, a solidão pode fabricar uma bomba. A solidão sempre fabricou bombas. O abandono a que nem mais prestamos atenção, mobiliza as massas ao absurdo fantástico, e de lá saem estrelas gloriosas. Quem sabe um dia nosso filho vire uma série da Netflix? Resta decidir se preferimos como vítima, ou facínora. Ao menos cairia no mar de fogo, no circulo mais baixo do inferno. 

            Como disse Jack, o personagem serial killer do longa The house that Jack built, escrito e dirigido por Lars Von Trier:

- "Se você sente que não é suficiente para o mundo, então invente mentiras e torne-se uma lenda."

            Simplório seria atribuir o jorro de violência aos quinhões direitistas de uma política militar e truculenta. É nítido que desde o integralismo brasileiro, emaranhamos à energia do país, um entusiasmo extremista, ainda caótico e arrevesado, que com a eleição e a divinização de um estúpido “messias”, ganhou robustez e agigantou a massa de maníacos incoerentes, descontrolados e antidemocráticos. A velha concepção hitleriana de “sociedade em decadência”, resguarda os destruidores e terroristas, como se paladinos, intrépidos e heróis, enfrentassem a coletividade doente. Essa dimensão multifacetada, alia o crescimento da extrema direita à excruciante solidão dos corpos. O indivíduo percebe, então, que sua apetência é o extermínio dos agentes construtores dessa sociedade que o humilha, inclusive politicamente, com a insegurança da democracia.  

            Quem poderá controlar os desejos internos? Quem poderia dizer-lhes que o mundo é quem manda, e não o contrário? O horror é como o tesão, a tara, a sigilosa perversão que pertence somente ao que perverte. Nem a polícia, nem o presidente. Nem o jornal, nem a ONU. Nem a própria moral pode desmanchar a depravação ou frear a mentira que contamos todos os dias aos nossos próprios ouvidos. Leve seus filhos à escola, e reze. Principalmente por seus coleguinhas.

quinta-feira, março 23, 2023

BBB - Se pudesse escolher entre o bem e o mal

 


A conquista da riqueza e do poder. Eis o impulso primordial que nos faz frequentes ocupantes nos cargos de escravocratas e tiranos. Pérsia, Grécia, Roma e sem desvios, rigorosamente no Brasil, onde longínquos de qualquer abolição, ainda perpetuamos a submissão degradante, vexatória e humilhante. No BBB, a importunação sexual e o racismo, são estruturas essenciais para que se compreenda um fenômeno recente, fresco e contemporâneo. 
            

O nome do programa, mais do que diretamente insinua a estrutura de controle futurista e totalitária criada por George Orwell, em “1984”. O “Big Brother” da TV, com o mesmo nome da governança presente na criação literária, forja de maneira perversa uma realidade quimérica e ilusória, onde participantes trocam a sua saúde mental pela auto promoção e pelo exibicionismo, tão presentes e protagonistas na cultura do narcisismo. Homens negros, mulheres negras, garotos, garotas, influencers e anônimos, encaminham suas vidas à ostentada escravidão, lacrados em um ambiente vigiado, escancarado e hábil em conceder-lhes crueldades e degradações contínuas e assustadoramente naturais. 
            

Talvez com o impiedoso pretexto de um “experimento”, o programa de TV submete-nos à exposição humana, como numa releitura hedionda de um passado colonial, onde seres pertenciam a outros seres, que lhes impunham castigos, reprimendas, agressões e perseguições. Por entre dinâmicas e competições patrocinadas, ornadas com desodorantes gigantes, hambúrgueres, lasanhas, financeiras e propagandas invasivas, o programa expõe seus participantes, e os direciona ao embate, ao conflito, para que suas diferenças substanciais e suas distintas capacidades frente à pressão psicológica, forneçam-nos o conteúdo voyeur televisivo. Do sofá de casa, enxergamos homens amarrados à troncos maciços, carregando vigas, minerando debaixo do sol, e o pior, enfrentando transparentemente os demônios incansáveis de suas próprias cabeças. Em horário nobre, ao fim da novela.

            

Fomos longe demais. Depois de assistirmos ao racismo e à degradação, estivemos de frente a um episódio duplo de importunação sexual. E permanecemos. Íntegros, intactos e pacatos, enquanto o crime sucedia em tempo real. Cúmplices, diriam os mais ingênuos. Que nada! A audiência e a exposição fazem-nos criminosos. A direção do programa é perversa, “neoliberalisticamente” nefasta e responsável ao permitir que uma mulher em situação vulnerável seja tocada e abusada, tornando-a também produto de sua maldosa publicidade. 
            

Aceitamos, portanto, assistir de nossas casas a realidade das ruas, das festas e dos almoços de família. O opressor e o oprimido, que neste caso, dessemelhante ao escravizado colonial, é humilhado por necessidade narcísica, de uma maneira tão natural quanto a respiração. Ali no quintal de casa, frente à farta churrasqueira, tomaríamos goles de cerveja gelada enquanto o tio depravado e criminoso enfia publicamente suas mãos na bunda de uma criança que brinca. Eis o fato. Estamos em tamanha decadência que nosso entretenimento é a angústia, o calvário, a ansiedade e a desgraça. Não nos interessa a festa, tampouco os banhos de piscina. E também não reagimos frente ao crime, afora publicações denunciando o fato explícito, como merchandising e publicidade de nossa própria bondade e compaixão. 

Não só os importunadores devem responder à justiça. São capangas de um líder facínora. A emissora e cada diretor, são os responsáveis imediatos pelo crime, posto que enquanto as câmeras apaziguavam os desejos devassos e delinquentes do telespectador, o alto comando permitia que o delito progredisse, e no dia seguinte, comercializava empacotada sua dissimulada decisão, através de um sisudo e circunspecto apresentador, que costumava rir à toa enquanto conversava com cavalinhos de pano. 

 Intolerância religiosa, abuso, ameaça, crises de choro, machismo e ofensas pessoais. Eis o horrendo espetáculo travestido de experimento antropológico, onde os participantes militam causas sociais a cada semana, soterrados por sua própria escravidão, e emudecidos pela ânsia econômica de uma empresa voraz. Tão voraz quanto seus egos e suas pretensões. 
No outro dia, em um sofá colorido, a apresentadora levanta questionamentos, como se o show fosse um acidente. Mera casualidade de um habitual cotidiano, e não a esquematização de um divertimento inclemente. De um espetáculo voyeur, onde a vulnerabilidade humana é a matéria prima. 

O Big Brother dá dinheiro e dá o que falar. O Big Brother é genial, talvez. Como obra de um ousado e destemido artista, talvez o programa fosse o objeto principal de uma investigação sobre a expressão brutal do século XXI. Forma, técnica e ideia. O Big Brother é tudo, menos inocente. A Globo é grandiosa, mas criminosa. E nós somos sádicos, que já não regozijamos com filmes e novelas violentas. Precisamos de mais. Queremos a baixeza do abuso psicológico, a atrocidade da violação sexual. E nos jantares desconstruídos, encontros acadêmicos e conversas eruditas, proferimos teses humanitárias, engajadas e inclusivas. Somos Fantásticos. 

Plim Plim!

quarta-feira, fevereiro 01, 2023

Do riso

"O cristianismo é pouco propício ao riso". Assim inicia o capítulo 4 de George Minois em A História do Riso e do Escárnio. Pus-me a relembrar o livro em uma despojada e alcóolica confabulação entre amigos. Lembrei-me também de Bergson e de Kierkegaard, com suas valiosas contribuições acerca da ironia. O filósofo Cícero, que após a queda da monarquia, viveu na conflituosa República Romana, dizia que sobre o riso, todos os estudos eram enfadonhos e chatos. De que maneira então trataríamos da zombaria e da gargalhada com a seriedade filosófica e investigativa de austero percurso intelectual? Talvez seja impossível. Os cristãos que o digam. Por amor ou tédio, o Jeová bíblico criou o céu e a terra. E não há nada de engraçado em tal concepção. Nunca houve. De que poderia gargalhar Adão, ou Eva, que sem malícia alguma, estão nus, jovens e eternamente belos? Habitantes de um perfeito jardim, onde tudo é harmônico, natural e pleno. Não haveria de ter risada possível, tampouco o sorriso de satisfação, posto que nem carência, nem superação foram coadjuvantes em suas existências. A permanente plenitude é o túmulo da jocosidade, e do contentamento. 

Quando entra em cena o nefasto, recôndito nas feições de uma serpente, é que aparece, portanto, o pecado. Desequilíbrio, desobediência e instabilidade. É nesse buraco que brota o riso. É a desforra do diabo, que dá ao homem a possibilidade de enxergar-se fraco, vazio e ridículo. Pode-se rir, então. Por que não haveríamos de zombar desse fantoche esquisito e grotesco, que arrota, defeca, envelhece e enlouquece? O riso insinua-se pela imperfeição humana. O humor é a constatação da decadência, e sincronamente, um consolo. Gargalhar compensa-nos para escapar ao desespero e à angústia, e isso possivelmente já seja um lugar-comum. 

A clamar contra a censura e a favor da liberdade de expressão, uns apontam a desaprovação do humor como o início de um pensamento fascista. Déspota e limitante. Do outro lado, e tal divisão era clara nessa conversa com os amigos, há os que juram defender que, como na vida, no humor não pode-se pronunciar a integridade das chacotas, das ofensas e das provocações. Pela moral, e pela sensibilidade, há de se ter limite, e mesmo com a função purgativa e artística da piada, deve-se calar imediatamente na iminência de violar alguém ou algo. 

Jesus não riu. A bondade carrega simbolicamente consigo a capacidade de abster-se à insensibilidade cômica, jocosa e devassa. Esta satânica paternidade liga o riso à imperfeição, à desvirtuação, e ao fato de as criaturas decaídas, cobiçosas e famintas, gargalharem frente ao sofrimento e à condição humana. O diabo ri de sua própria existência. De sua exclusão. O soberano agente do mal é, invariavelmente, ligado às festas, às surubas e aos bacanais. O tinhoso é pai do carnaval, que já na Idade Média apresentava bufões, asnos e bobos, vestidos grotescamente e movimentando-se de forma estapafúrdia. Essa paródia louca que exorciza e acalma, prevalece nitidamente ligada ao monstruoso, à vadiagem e à falta de sentido. O carnaval sorri loucamente, sem compromisso e desprovido de responsabilidade. Gêneros confusos, obscenidades e escatologias, são o dispositivo cênico de uma festiva fuga à realidade. 

Henri Bergson deixa-nos evidente: o riso é incompatível com a empatia. Há de se preterir a sensibilidade, e castigar os defeitos, as tragédias e as doenças. Se por um lado, é purgativo e exorcizante, atacando as angústias e os poderosos, por outro, o riso comete excessos, poupa culpados e fere os inocentes, visando um resultado incontrolável e geralmente, deixando de lado a capacidade de avaliar os casos de maneira específica e ética. Mostra-nos o filósofo francês que a discussão sobre os limites do humor não é tarefa simples, e não pode ser discutida universalmente. Rir é sempre, como aliás qualquer outra atividade humana, um gesto moral. Que por isso, pode ser errado. Ainda assim, a causa desse erro não está necessariamente na piada, mas no que nela faz-nos sorrir. 

Da lágrima não aguardamos escrúpulos, e parece que, no sofrimento, temos o salvo conduto para estampar fisiologicamente a expressão no rosto. O inverso, a antítese. Chorar de tristeza como o antagonismo perfeito à gargalhada. São dia e noite, Yin e Yang, e como exercício, deveríamos ponderar a condenação do riso, frente à condescendência e à compreensão que entregamos ao pranto. Afinal, fazer chorar é menos virtuoso do que fazer sorrir. Mas sorrir é menos virtuoso do que chorar. Dirão que importam os motivos, mas pouco se julga os estímulos que levam ao choro. Aplicam-se os bondosos a reconfortar o melancólico e estabelecer novamente a normalidade retilínea. 

Encantadores e requintados, o choro e o riso são causas um do outro. Pode-se fazer sorrir pelo choro, e o mais preocupante, chorar pelo riso. Injúrias adultas e implicâncias juvenis, findam invariavelmente no sofrimento. Nos tribunais, nas escolas e, recentemente, na grande mídia, o humor é tratado como delito. Pela precaução moral e criminal, afigura-se o riso como peixeira, ou como espingarda, capaz de lesionar e ferir. Causar o pranto. 

Lipovetsky em A Era do Vazio, retrata a sociedade pós-moderna como desprovida de sentido nas grandes instituições morais, sociais e políticas. Nela, a cultura é aberta de forma a abrandar e amolecer as relações humanas, forçando a predominância de certo hedonismo, tolerância e coexistência pacífica dos agentes antagônicos. Violência e convívio, ambientalismo e consumo desenfreado, índios e garimpeiros canalhas, patrões e empregados. Num sopro de Sérgio Buarque de Holanda e seu "Homem Cordial", Lipovetsky evidencia uma lógica bipolar, que traduz-se no humor humilhante, politicamente incorreto e ofensivo, que de maneira irrefletida engrandece estupros, zomba de acidentes, graceja da morte e diverte-se com a amargura. 

Do que riremos? Perguntará o Diabo. De nada. Responderá nosso Deus. Os equânimes e equilibrados Aristotélicos dirão: riremos do que a ninguém possa magoar. E nada mais. O Diabo rirá, de sarcástico. Deus seguirá sério, sóbrio e solene. Alguém rirá de tal conversa e outros a julgarão frívola, tola ou fútil. O riso é como a dor. Dipironas e Paracetamóis poderão abrandar os espasmos, as cólicas e os cortes. A moral e a doutrina são a analgesia do riso. Por elas, prenderemos as bocas e impediremos os ruídos. Intimamente, duvido muito de nossa responsabilidade. Contesto veementemente nossa capacidade de fidelidade às éticas vestimentas. Do mesmo modo, reflito imensamente acerca da perversa intenção do comediante, ao expor sentenças hostis, nocivas e jocosas sobre a inanição de miseráveis crianças abandonadas. 

 O riso da morte é inútil frente ao fenômeno. A alegria pela vida, também. Após o diagnóstico, talvez uma gargalhada enfraqueça nosso próprio câncer. O choro talvez o torne soberano e poderoso demais. A indiferença nos faz impostores, hipócritas. Se nos colocarmos no lugar do outro, talvez estejamos perdendo o nosso direito de rir, e de chorar. Há mais tristeza no mundo do que nos limites de nosso apartamento.

quinta-feira, outubro 27, 2022

No próximo domingo, inegavelmente, a vitória sobre o Bolsonarismo é o que mira nossos mais profundos desejos. A precisa porcentagem que nos trará, ao menos, qualquer esperança de que à terra desça, um sonho intenso. Um raio vívido de amor e de esperança. Há muito resignei-me e aceitei que não há encantamento algum na política, assim como não há fartura ou abastança de virtudes, santidades e honras na raça humana. Campanhas eleitorais, imundas peças publicitárias, roupas, discursos, paradigmas e redes sociais. Somos trépidos aventureiros que escolhem entre o desespero e a aniquilação. 

Afora a vitória das urnas, o resultado não desenha-me um otimista. Temos uma axiomática derrota. Fomos constrangidos a ela. Perdemos e padecemos pela existência do fenômeno chamado Bolsonarismo, que há pouco, conhecíamos somente como alguma inexistente palavra que acolhesse em sua significação, conceitos como "boçalidade", "rudeza", "delinquência" e "imbecilidade". O Bolsonarismo nos tirou muita coisa. E nos deu outras. Brinda-nos com a obrigação de dividir o mundo com sujeitos que não pretendem dividir. Nem o mundo, nem o que dele origina-se. 

Confesso que ando pelas ruas imaginando a cada indivíduo que cruzo pelo passeio, qual será sua escolha. No que acredita aquele fulano. Seria capaz de ignorar um índio em chamas? Ou espremer com o alicate a língua de um adversário político, até que sob gerência de farta tortura, entregasse seus companheiros? Espancariam o filho homossexual ou menosprezariam a vida de meio milhão de brasileiros? Enxergariam tanto "espírito no feto e nenhum no marginal", incriminando jovens e pobres mães que, por ventura, não desejassem procriar? Ou derramariam mentiras kafkianas e esquizofrênicas, na tentativa de vencer a qualquer custo e manter um poder insensato, desleixado e irresponsável? 

 Homens e mulheres que acostumaram-se com o subdesenvolvimento da própria existência. Com a míngua da civilidade, da amabilidade e da benevolência. Estarão por aí, nas portarias, condomínios, piscinas, shows e veraneios. Nas torcidas, festas infantis, puteiros e capelas. Desertores da misericórdia e carrascos do altruísmo. Exterminam grosseiramente a doutrina cristã, e renegam o seu próprio Deus, ao ignorarem conscientemente o livro sagrado, quando nos diz: 

"O violento recruta o seu próximo e o leva por um caminho ruim." 

Havemos de vencer no domingo, e extirpar, ao menos do Poder Executivo, o símbolo da inépcia, da tolice e da maldade. Havemos de saber enxergar o outro, e compreender que a espécie humana é um descuido das divindades. Um hiato na harmonia do universo. E que estarão por aí os intolerantes, brutos e incapazes. Doutores, ou não. Endinheirados, ou não. Provavelmente seguirão a proferir sandices, mentiras, desvarios e delírios. A eleição não sumirá com os mentecaptos. Não esvaecerá os cretinos adesivados em volumosas camionetes. 

Eu tenho medo. Do meu país. De minha própria gente. Inquieto-me e desassossego-me. Que direi aos meus filhos? Que conversarei com o motorista do taxi? A que concepções dedica-se a moça do café? Roubaram-nos, por enquanto, a bandeira. Espoliaram-nos a serenidade, a trégua. Puseram universitários contra a integridade, pensadores contra a sensatez e negros de frente para a pólvora. Afanaram a ordem, a brandura e emporcalharam o silêncio, com tirânicos discursos e inóspitos comportamentos. Causaram-nos constrangimento. E tentaram, dia a dia, emoldurar outra vez heróis perversos e truculentos. 

Eu quero um Brasil que se orgulhe do preto. Não do verde e amarelo. Não quero patriotas. Quero cambalhotas. Um Brasil que cultue Marias e que respeite a história, reaja contra a dor e a miséria. Quero um país que talvez ainda nem tenha existido. Eu quero é enxergar a bandeira outra vez, como alegoria. E lembrar que por ali, há poeticamente o significado das cores. 

Afora das urnas, a cidade está lotada de ratos. E os ratos seguirão pelos esgotos. Haja o que houver, os ratos jamais desaparecerão.

quinta-feira, outubro 13, 2022

Ao meu avô

Hoje meu avô foi enxergar a cidade de cima. Como talvez não tenha visto em suas minuciosas diligências nas cartografias. Agora em celestial companhia e moderna resolução, como jamais pôde encontrar nos corroídos mapas a que se debruçou durante anos, por entre os poeirentos corredores do Instituto Histórico.
 

Meu avô era um curioso. Tinha a discrição de um adulto encabulado, e a bisbilhotice de uma criança que sonhava escutar as histórias. Averiguar as personagens. Entusiasta das revoluções, independências, batalhas e nascimentos. Zeloso pelas datas, episódios, tratados e cronologias. O meu avô era memória. Não dessas, rasteiras, a que se espera evocar o mês passado, ou anos atrás. O meu avô era capaz de rememorar a tensão platina durante a Guerra do Uruguai, e voltar à 1864, como se lá estivesse ao lado dos Colorados, ou mais provavelmente, pela aversão futebolística ao vermelho, lutando em companhia do Partido Blanco. 

 Diz-se do velho que jamais foi à Europa. Afora as enciclopédias e a farta literatura que insistira declamar a mim, meu avô não saiu do Brasil. E teria motivo? Posto que seu divertimento era desvendar as ruas da cidade, como se fossem filhas. Resolver o dilema das avenidas e descrever o cotidiano porto-alegrense como se testemunhasse a balbúrdia de cada esquina. Íntimo de Castilhos, Bonifácio e Getúlio. Conhecido de Canabarro e Garilbadi, olheiro das estâncias, das charqueadas e das missões, era capaz de narrar as biografias como se estivesse presente, sentado na velha cadeira de balanço, ou no despojado e simplório assento acolchoado, de onde batia com os dedos eficientes na maquina de escrever. 

Lembro-me do jornal espalhado na cama. Todo santo dia, ao lado do chimarrão, e da velha esposa. Amiga e companheira que a saudade deve aligeirar o velho pelos caminhos luminosos que levam da vida à morte. Pelo passeio leve e acelerado que faz-nos acordar sem ter de abrir os olhos. Onde os corações, pulmões e artérias, são dispensáveis. Supérfluos. Certamente meu avô se despedirá das calçadas da Riachuelo, e andejará resoluto até a General Câmara, avizinhando-se da Borges, onde encontrará um longevo admirador a abordá-lo no itinerário. 

Sem muita paciência para as frivolidades, mas ainda assim atento à magnitude da poesia, o velho declamava Neruda ao neto ainda miúdo. Com os olhos ensopados por uma lágrima fugidia, cantava as frases com aptidão cenográfica. Ao meu avô, parece-me que a palavra foi companhia perpétua, e dias antes de partir, foi ainda capaz de proferir-me sentenças de parnasianas construções, repletas de um sofisticado e engenhoso português. Língua a que ofertou elevado respeito, cortesia e gentileza. 

Porto Alegre já não é mais a mesma. E de seu bairro tão amado, o Menino Deus. Dedico-lhe um verso de Caetano, na canção que carrega o nome das cercanias: 

"Menino Deus, quando tua luz se acenda
  A minha voz comporá tua lenda
  E por um momento haverá mais futuro do que jamais houve." 

Não poderá mesmo haver futuro, ao apagarem-se os homens como meu avô. Homens que esmiuçaram o passado, e que indagaram os relatos, os livros e as anotações. Apaixonados pela cidade, e verdadeiramente fascinados pela pátria. Que saibam construir o que é subsequente. O que virá. 

Deixa meu avô um aviso, um pedido. Até mesmo uma advertência. Cuidem do futuro como ele cuidou do passado. Sejam verdadeiramente políticos e protejam a verídica família, a comunidade e os amados, assim como fez o velho. Até os últimos dias. Entranhado em farta e encantadora literatura, pleno de uma artística e rústica delicadeza, dedicado ao trabalho e às recordações. Meu avó é um fascículo volumoso na história da cidade. Do país.

quinta-feira, setembro 15, 2022

De Férias com o Ex


Não adianta. É axiomático. Sou um eterno apaixonado pela podridão. Obcecado pelo que é reles, depravado, baixo e ordinário. Fascinado pelo obsceno, enamorado das coisas canalhas, indecorosas. Há mais de poesia no indigno, e o que é sórdido e escroto tem maior aptidão e potência para ser belo. As melhores cebolas são, sem sombra de dúvidas, as que caem ao chão e são acidentalmente chutadas para debaixo do expositor. Eis o encanto do esquecimento, a beleza do desprezo e a existência rasteira, que foge aos manuais da perfeição e da plenitude. Como a vida. Como despertar humano. Como a respiração.
 

    

Por entre Hegels, Kants, Renoirs e Saramagos. Imerso na dedicação aos Sartres, Matisses, Confúcios e Heráclitos, pus-me a assistir um reality show chamado "De Férias com o Ex". Não fora o primeiro, posto que tornei-me um fã irredutível e fiel das desavenças e xingamentos praticados em "A Fazenda". Estava ali. Em algum momento da madrugada, eu havia terminado a primeira temporada. Tinha inveja dos corpos. Eram Apolos, Ares, Poseidons e Hércules. De ventres maciços e rijos, límpidos como em desenho. Com lábios encorpados e queixos protuberantes, os homens quase davam-me a coragem para o abandono das comilanças, das massas, caramelos e manteigas. Quiçá fariam-me hastear pesos e encarar-me agachando em frente ao imenso espelho da sala de ginástica. 


    

Se para os gregos, o belo corpo era sinônimo de uma mente brilhante, os rapazes de nosso "De Férias com o Ex" estavam afastados dessa premissa. Ostentavam não mais do que a capacidade de pronunciar as gírias, articular frases prosaicas e empolgar as moças. E não os depreciemos. Eu cobiçava também suas mentes e vocabulários, acanhadas perspicácias e sucintas mentalidades. Eram significativos, indelicados e rudimentares como jamais poderia eu arremedar. Sedutores inabaláveis e belos como os guerreiros medievais de aparentes cicatrizes. Abençoados pelo universo e por suas condutas sadias, atléticas e dedicadas. Uma provocação ao homem comum. 


    

Elas eram livres, independentes e empoderadas. Não menos do que lindas, cada garota carregava consigo aquela malandragem impostora e aquele glamour magnético de uma soberana Anitta. Douradas e curvilíneas, sensuais e animadas, representavam talvez o protótipo de uma neo-feminilidade. Antagônicas ao abuso masculino de um século XIX, eram formosas e ousadas, descontraídas, nuas e desapegadas. Havia contestação em suas condutas e revides em suas palavras. Alinhamento nas coxas e panturrilhas, recheio nos peitos e bocas, além dos relevos e proeminências nos traseiros e personalidades. Ávidas pela diversão e interessadas em uma nova liberdade, soterravam Mary Wollstonecraft com o esquecimento total de suas capacitações para a reflexão e para o protagonismo. Eram o televisionamento da velha e imposta fragilidade feminal, disfarçada e adornada pelos adereços ingênuos da emancipação. 


    

A escassez da sororidade e a ausência completa de uma genuína compreensão sobre os vínculos humanos, fazem do programa a perfeita exibição pública de uma sociedade apressada e angustiada. Loucos pela notoriedade, e ávidos pela multiplicidade dos carinhos e afagos, o programa exibia uma explosão de egos. E de casa, outra vez, eu nutria alguma inveja daquela gente. O mais incrível? Não havia vencedor. Ao oposto de outros programas como ele, "O de Férias com o Ex" não oferecia milhões, veículos, cursos, títulos ou troféus. O prêmio? Superar o nada dos prazeres, das ofensas (geralmente machistas), e das bebedeiras. Hedonismo, egoísmo e abuso. Minha alma apaixonada pela podridão e pelo nocivo, delirava a cada episódio. A reprodução incansável de velhos conceitos e práticas era, inacreditavelmente, a novidade revolucionária de jovens insuficientes, escassos, tolos, mas extremamente felizes e belos. 

 


Talvez nunca tenhamos visto tantas relações abusivas, e talvez nunca tenhamos falado tanto em como evitá-las. A sociedade do Instagram leva mais a sério suas postagens do que sua consciência, e aí talvez esteja o segredo para o novo modo de viver. A geração que esqueceu do amor, desprezou o outro e o romantismo exacerbado, como se a individualidade os fizesse completos, bem acabados. Seguidores de prazeres líquidos. Quantos ciúmes eu carrego desse poder. Já não bastava seus corpos, seus bronzeados? Não há psicanálise que possa vencer a energia jovial da imbecilidade, nem que consiga amansar a minha agonia. Afinal, eu havia escolhido a dor, a percepção e a entrega. 


    

O mais bonito? Não há inteligência alguma em minha escolha. Eu sou um espectador do caos. Um homem enfeitiçado pelas lentes antropológicas da perversão e dos erros, como se realizasse atividade acadêmica dedicada à decadência, ao vício e às taras. "De Férias com o Ex" é agonizante, perverso e maldoso. Há algo melhor do que isso numa sexta-feira à noite?

quarta-feira, agosto 31, 2022

Sérgio Buarque de Holanda, o "homem cordial" ou a dissimulação do brasileiro


Há muito compreendemos o que o nos quis dizer o historiador paulista. Nada havia de aprazível, ameno e terno no "homem cordial". Contava-mos sim com a aproximação etimológica de um convincente latim. O cordios, vinha do "coração". Agíamos e interpretávamos a história, os episódios e as impressões com a ingenuidade dos afetos. Com credulidade e talvez inocência, preferíamos o coração para dissimular as relações profundamente violentas a que estávamos habituados. O que Max Weber chamara de "Ética do Trabalho", em terras brasilis havia edificado-se como a Ética da Aventura. Conceito criado por Sérgio Buarque ao exemplificar essa relação muito pouco racional, e bastante amistosa. Mesmo que existente nas dependências e associações mais perversas e parasitárias. O explorador e o agressor poderiam facilmente nutrir avassaladora camaradagem e afeição pelo explorado, fazendo-o quiçá perceber sua degradante condição. É o que, maliciosamente faz o brasileiro comum. E há muito. Assim o machismo desembrulha-se como divertimento, a homofobia evidencia-se pela chacota e as intolerâncias e hostilidades contra a cor da pele, maquiam-se por entre desprendimentos, isenções e brincadeiras. 

 

A eleição de 2018, suas anterioridades e anteposições trouxeram-nos apressadamente o passaporte para a efetivação de um novo "homem cordial". O que vinha do coração e dos afetos, é prontamente disposto à frente de toda e qualquer racionalidade, agora em detrimento da afirmação de um homem que não discute trivialidades, que não liga para as agressões, rejeições e violências, mas que é violento, descomedido e agressivo. A provocação potente e a visível hostilidade são acortinadas e celebradas por trás de um véu bordado em conceitos enganadores como espontaneidade, simplicidade, desconhecimento e desembaraço. A denúncia ao ultraje seria, portanto, tratada como vitimização, ou com um pouco mais de graça, apelidando a conduta de "mi-mi-mi". Era outra vez o "homem cordial" mascarando conflitos e fortalecendo o patrimonialismo.

 

Estamos predestinados à tolerar a exploração. Talhados à reverenciar relações abusivas e celebrá-las como espontâneas, genuínas. Dos entregadores de comida às empregadas domésticas. Das mulheres, dos cotistas, índígenas, negros e miseráveis, aos ribeirinhos e trabalhadores sem terra, há sempre um cordial e simpático amigo que os governa, e os afronta publicamente, em detrimento de uma relação conveniente e saudável. O mercado, a globalização, os pomos amargos de um capitalismo excludente mas necessário. São tantas alegações e teorias, justificativas e pretextos. A esfera política foi invadida pelas pautas oportunas e pertinentes ao velho "homem cordial". O presidente afasta-se da responsabilidade de um dirigente, da sensatez de um líder, e atira-se intrépido na informalidade de um genérico cidadão, de um despretensioso e reles sujeito.

 

Enquanto seus adeptos, simpatizantes e até os sonsos imparciais, puderem aplaudir a farsa de um brasileiro dissimulado, dilataremos nossa infinita discrepância a um lugar inspirador, justo e fértil. Enquanto a graça e a naturalidade esconderem as feridas mais profundas de nossa comunidade, continuaremos a conviver com o tresloucado raciocínio de que nossa ditadura foi benéfica, e de que naqueles tempos, não havia a usurpação do dinheiro público. Gilberto Freyre seguirá vivo e afirmando que nossa escravidão foi branda, demonstrando um racismo lírico, piegas e romanesco, como se não houvesse sangue, lágrima e dor nos corpos negros.

 

O brasileiro é dissimulado e gosta de sua própria falsidade. Reverenciamos a dominação masculina às mulheres, quase sempre sorrateira, indireta, e colorida pelas tintas do amor e do carinho. Festas, opiniões e símbolos, o brasileiro é um malicioso perpetuador das dores. E precisamos, senão no almoço da família, ao menos na política, varrer o impostor cordial para longe do poder. Ele anda inventando até que a liberdade de expressão o alforria das condenações pela conduta intolerável e hedionda. O "homem cordial" ignora os dados, as pesquisas e o jornalismo. Não lhe interessa que se noticie a sua crueldade. É alienado de si, e não há pior alienação. Exceto para a arte. Mas bom… disso o "homem cordial" não entende nada.



quinta-feira, agosto 25, 2022

Bolsonaro não é gay

Jamais a mim pareceu absoluta veracidade o fato de que a aversão caracteriza alguma afinidade, paixão ou tesão. O intolerante teria assim, a magia de um conflito, algo finamente psicanalítico que pudesse explicar sua violência, seu sectarismo e sua estupidez. Fugiríamos do fato de que odeia, assim como ama, utilizando-se de certezas grosseiras, indelicadas e principalmente, confiando e valendo-se de argumentos imprestáveis. 


Mas algo me chamou a atenção. Parece-me talvez um sinal de que o amaldiçoar dos comportamentos e desejos alheios, escorre por entre os dedos curiosos, entusiastas e até encantados do tirano. Pelo décimo segundo ano consecutivo, somos o país que mais assassina transexuais no mundo. A rejeição familiar, a marginalização econômica e a impunidade machista dos criminosos, empurra-nos ao fundo do poço. Por outro lado, segundo os sites especializados no assunto, somos também mundialmente, o país que mais consome "pornografia trans". Temos um conflito de informações ou uma prova inequívoca de que a agressão sucede o arrepio? O tesão? Parece que tem gente demais maldizendo o carnaval, enquanto as ruas seguem lotadas de foliões, brilhantes fantasias e mijos na porta das lojas. 


O país de Bolsonaro é o campeão em momentos eróticos com transexuais, enquanto domina, humilha e afronta homens que desejam homens e mulheres que, por um tropeço genético, nasceram com um elemento trocado por entre as pernas. Essa é a verdadeira liberdade de Bolsonaro. A anarquia racional, a barafunda humana, a esculhambação de uma república. Querem o assassinato e a segregação de quem, há dois minutos, lhes serviu como subalterno, como inferior. Assim raciocinam também com as mulheres, posto que em nenhum momento lhes atribuem valores acima dos que assistiram por toda a vida em suas tradicionais famílias brasileiras. Aqui a mulher, ao homem instintivo, carrega nos seios plenos a existência incomodativa.  O motivo pelo qual a travesti torna-se perfeição. 


"Brasil não pode ser país do mundo gay. Temos famílias.", disse o parco presidente à nação que já persegue homossexuais naturalmente, como se maldição demoníaca fosse, tal e qual a cruel caçada aos albinos no Malawi. País miserável e rudimentar do sudeste africano. O fato é que não somos um país do mundo gay. Somos um país que, também miserável e rudimentar, vergonhosamente ainda massacra dois homens apaixonados ou garotos afeminados que desejam não somente sobreviver, mas existir, como pessoa. Gozar.  E reaprender.  Ensinar-nos insistentemente a multiplicidade do amor. 


Disse-nos o RedTube que essa obsessão reflete também em masturbações às escondidas ou em festas privadas com travestis e transexuais. Fato que não devia causar-nos constrangimento, a não ser que protegêssemos e zelássemos por quem nos encanta sexualmente. Mas feito o samba, o funk e a religião africana, a orientação homoafetiva é tratada nas Terras Brasilis como marginal, periférica, delinquente. E assim o país que se esconde em personalidades como Bolsonaro e sua corja, parece convencer-me de que a aversão é o resultado de uma incrível atração. Mas parece somente. Porque pouco me convence. Afinal, onde muito se critica, muito se deseja? Onde muito se agride, muito se fantasia? E onde tanto se mata, muito se é tentado pelo tesão? Não é razoável para mim. Parece-me pouco. 


Bolsonaro não é gay. Não é afeiçoado à vida a ponto de subverter nada que é banal, como a heterossexualidade. Não possui a capacidade abstrata de insubordinar-se à criação estúpida e ao modo descortês com que trata os discordantes. Bolsonaro não ama nem as mulheres, nem os homens. O exceptuado capitão ama, quiçá, suas certezas belicosas e seus argumentos tresloucados. Não carrega consigo a capacidade de ser ardente como Ney Matogrosso, deslumbrante como Pablo Vittar. Não chegaria perto da bravura de Laerte, da sapiência de Renato Russo ou da maestria artística das Dzi Croquettes. Bolsonaro não tem a sabedoria e a aptidão humana para gozar com um homem. E sua trupe não há de compreender o orgasmo, a libidinagem e a safadeza dos corpos e das almas. No máximo, lideram a imoralidade no trabalho, no gabinete ou na frieza dos afazeres de suas funções. São indecentes onde não deveriam. Degenerados e escandalosos de forma apolínea, e nunca dionisíaca como necessita o princípio vital humano.

Todo Bolsonsrista é um infeliz, que disfarça de si a própria imoralidade. Esta que faz-nos música e não rocha. Que dobra-nos como tecido e não como folha seca. 

Jonas Lewis da Costa Franco

domingo, agosto 07, 2022

Solidão

 


Fui um garoto sozinho. Nunca desamparado ou desfavorecido. Há de se compreender a diferença. Sozinho. E mesmo se no meio de muitos estivesse, desabitavam-me. 

A solidão não é um caminho. Não é um sentimento. Não chega de repente assim, como a ira ou a dor. A solidão não dói. É como um cheiro de mar, que mesmo longe de qualquer litoral, pode-se perceber. A solidão é um sonho persistente. Um engano na própria capacidade de sonhar. Constante e permanente como a existência. A solidão tem sua própria respiração. Incansáveis pulmões que inflam-se como lagartas bem alimentadas. Envaidecem como um pingo grosseiro de chuva caudalosa. 



Não sei bem no que pensava enquanto caminhava nas pedras pontudas da rua vazia. Acuminadas e negras, açoitavam os pés imaturos que buscavam alguma serventia no passeio. Quando se é solitário, tudo vira poesia. Quer-se a companhia das conjunções, a intimidade com a desistência das frases. Recordo-me pouco do que não fosse solidão. O repouso das tardes em que não havia ninguém. A feroz imaginação que engendrava inutilidades, e monstros. A destruição que sempre nasce do exílio, assim como a construção rebenta do isolamento. Incoerências que enganam a ciência e caloteiam a lógica. Tudo para zombar dos sujeitos e torná-los relevantes. 



Fui um criador de temores, e há tanto de encantador no desassossego, que pude enganar alguns desavisados. Não havia em mim alegria. Havia talvez o entusiasmo de intercalar minha solidão com alguma necessária gozação. Havia a urgente deserção do medo. A efêmera utopia de uma alma festiva e radiante. Era um dissimulado. 



Acostumei a olhar o chão e nunca o céu. Fugira da banalidade das estrelas, e da infante curiosidade pelos planetas. Fui um garoto dos assoalhos, dos pavimentos e das gramas. A solidão fazia-me pousar o queixo sobre o início do pescoço. Eu gostava era de enxergar a ponta dos pés, os joelhos. A pressa das formigas. Parecia que ali estavam as frases abandonadas, como se o chão hospedasse o que foi calado, a resignada palavra que por um momento, parecera perfeita, cabível. Somos o resto das coisas não ditas. O subproduto de um universo calado, esquecido e solitário. O que perversamente fugiu de uma folha amassada, de um poema não fecundado. O que escapou pela fresta de uma frase engolida. O mundo real é a inconveniência que perturba a placidez do inexistente. E o inexistente é o sustento da solidão. 



Eu continuo o mesmo garoto. Não há evolução ou metamorfose que não um conjunto de percepções, costumes e escrúpulos. Aprendi alguns segredos e atinei às soluções. Métodos, etiquetas, caminhos e prescrições. Alfabetizei-me no esquecimento do chão, na rejeição às formigas. A gente aprende até a somar os números, e dizem-nos que é importante. A gente vira o não dito, e as palavras caladas abarrotam as gavetas do corpo. O corpo do mesmo garoto. Solitário, como as palavras esquecidas que guarda com afinco. 



Não há prazer algum na solidão. Não há descoberta. O deserto anseia por água, após conhecê-la, e talvez todo garoto seja um deserto ávido, impaciente pela companhia do outro, pela divisão de sua jovialidade. O garoto se distrai, compete, quer o vínculo. Ainda não lhe cabe a harmonia do sexo, a afinidade apaixonada do romântico ou a sensatez monitorada de um adulto. Mas o garoto inventa a realidade num carpete. Sábio, foge como louco da solidão. 



Hoje eu não sei onde guardar minha solidão. Não há garoto, nem carpete. De gavetas lotadas e tempo escasso, percebo que solidão não se guarda. A solidão é cola, encalço. Pegadiça como mel. Com a solidão a gente faz um pacto, que eu e ela descumprimos todos os dias. 


terça-feira, julho 05, 2022

Os confins do humor ou o charme da atrocidade?

Muitos foram os nomes. O bíblico Barrabás, que ao invés de um trivial larápio, pode ter sido preso como revolucionário que afrontara os romanos na batalha por Israel. Jesse James, com nome de galã Hollywoodiano, especialista em assaltos durante a Guerra da Secessão. Billy The Kid, o famoso fora da lei que assassinava e roubava animais durante os românticos tempos de Velho Oeste. A dupla Bonnie e Clyde, presos após dezenas de assaltos a banco, e mais recentemente o cativante e sedutor Pablo Escobar, personagem de séries, filmes e documentários, que em sua maioria, enobrecem e eternizam as maglinidades cometidas pelo traficante colombiano. 

Capone virou nome de restaurante. Charles Manson constitui parte da alcunha de um rockstar, e até Lili Carabina teve sua vida encenada pela estrela brasileira Betty Faria, num filme intitulado "Lili, a Estrela do Crime". Elias Maluco, Fernandinho Beira-Mar, ainda num carinhoso diminutivo, que o faz parecer apreciado, querido. Bin Laden, Saddam, e como esquecer de Jack, o Estripador?mistérios e incógnitas, que geram histórias, livros e estudos. O homem que assassinou treze miseráveis messalinas, e até hoje é lembrado com elegância, e certo fascínio. 

Há no crime, inegavelmente, algo de romanesco, lírico. Por entre invasões, trapaças e golpes fatais, a história das vítimas é deixada de lado. A própria sociologia e criminologia glorifica o contraventor, ao estudá-lo. Afinal, quase todo objeto de estudo é intrigante, encantador, e tratando-se das mazelas psiquiátricas, o corriqueiro ser humano torna-se raro, incomum, e por conseqüência, admirável, surpreendente. A violação de princípios morais é, por si só, uma elegante espécie de arte, que enfeita as tragédias e inspira o reconhecimento desses agentes do caos. E aqui não estamos falando de Guy Debord e de sua "Sociedade do Espetáculo" que por certo tem suas louváveis considerações sobre esse fenômeno. Talvez estejamos falando do deslumbramento humano pelo que é empedernido, anárquico e por tantas vezes, desumano. 

O consenso civilizatório, quando deturpado, causa-nos talvez uma espécie de encantamento, capaz de produzir imensa identificação tipológica com gângsters, poderosos, assassinos e golpistas, que em sua obscura existência infame e transgressora, pintam de forma surrealista o cenário monocromático e insosso do cotidiano. O canalha que trai com inteligência e método, o conquistador que ilude e dissimula, e o contrabandista que proporciona o acesso ilegal ao produto vetado e escasso, tornam-se facilmente heróis da indústria cinematográfica e cultural, alimentando como Prozac a alma de cansadas criaturas. Lampião, Madame Satã e Robin Hood, tentamos até impor-lhes benevolentes intenções, a fim que possamos talvez, consumir-lhes com aprazibilidade e mansidão moral. Afinal a culpa castigaria-nos vigorosamente ao assumirmos a pacata identificação com estupros, facadas e roubos.

Há quem se pergunte, ainda, o por que enxergamos a ostentação e a exibição de fuzis nas mãos de pequenos meninos na periferia da cidade. E por que os garotos brancos de escolas particulares, fantasiam-se de meninos periféricos, consomem sua música e evidenciam a sua moda, nas vestes, na linguagem e na conduta. O crime, a contravenção, a transgressão e a desobediência civil, os conferem a resplandecência e a luminosidade social que a todo jovem é primordial. 

O filósofo francês Gilles Lipovetsky, nos "Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo”, investiga a sociedade pós-moderna, marcada pelo desinvestimento público, pela perda de sentido das grandes instituições morais, sociais e políticas, e evidenciada pela cultura desimpedida, que tenta serenar e apaziguar as relações humanas, buscando um tipo de predomínio da tolerância, do hedonismo, e principalmente, a coexistência pacífico-lúdica dos antagonismos. A lógica neoliberal é parte primordial desse processo, assumindo que enseja a exclusão e a discriminação como parte preponderante de seu projeto econômico e social. Mas necessitando quase sempre, desse fleumático e manso convívio entre opressor e oprimido, entre tirânico e humilhado. 

Da Vinci e Goya foram engraçados. Puseram humor em suas obras e aos olhos mais desatentos, talvez tenham passado despercebidos. Na filosofia e no mundo acadêmico, o escárnio e a zombaria são um sinal inequívoco de superficialidade. De incultura e imperícia, e talvez até de certa incapacidade de produção literária, filosófica. Havemos de transfigurar, e mesmo que meia dúzia de teses adotem o riso como tema, ainda passamos longe da averiguação séria, de um assunto gozado. A lógica confusa de uma sociedade que celebra o crime, traduz-se num humor de humilhação e arrogância, que transforma o politicamente incorreto em indispensável, e não mais em equipamento cômico. Há certa perseguição pelo choque, e pelo riso triste. Aquele que provém de uma hostilidade ao desvalido, ao desamparado ou ao inválido. 

Eis que me deparo mais uma vez com o texto afrontoso e malvado de um comediante chamado Léo Lins. A afronta e a maldade, não são vilãs e jamais a arte as assumiria como tal, mas o humor que somente é capaz de esculachar a tristeza, de meritizar o estupro, a deficiência física e o drama dos indefesos, é arte debilitada, quebradiça, e intelectualmente pobre. Condenada ao tempo. O humor, que há tanto tem sido repudiado pelas camadas intelectuais e acadêmicas, na voz desse rapaz, é infelizmente um apelo bobo e gritante pela atenção da mídia. Sem a coragem e a astúcia de Capone, ou a impavidez de Escobar. Sem a elegância dos mafiosos italianos e a perspicácia de Ronald Biggs, Léo Lins será esquecido pelo tempo, e venerado por grosseiros, indelicados e insensíveis. Não o quero suspenso, censurado e calado. O desejo o tempo. Não há nada mais engraçado do que o tempo.

sexta-feira, junho 24, 2022

E lá estava. Sentado numa das centenas de cadeiras estofadas do auditório. Escola particular da cidade. Garbosa e elegante, bem sinalizada e limpa. Imensa. Era o dia de receber os familiares, e celebrar a sagrada e santificada instituição esculpida pelos parentes. Recrutados pais e ornamentadas progenitoras, esperavam sentados ao lado dos filhos pela cerimônia. Os herdeiros ao celular, e lá estava eu, calvo, cândido, alvo e caucasiano. Mais um privilegiado que dirigiu seu veículo até a escola. Não havia discrepância. A disposição cênica do local era constante, uniforme, como um jantar na Berlim de 1930, onde correligionários bajuladores de Adolf o cercavam lisonjeados da situação. Pais e mães, avós e irmãos. Cônjuges, patroas, senhoras e sinhás. A platéia era o escárnio de um Brasil melancólico. 

As palavras do mestre de cerimônia eram murchas e delongadas, como se batizasse-nos catolicamente. Como no fatídico domingo de Páscoa, parecíamos apóstolos recebendo a vida nova de um Cristo ressuscitado, e toda aquela desalegre atmosfera lotada de arrependimentos, culpas e penitências. Afinal, era uma escola. E todos éramos cristãos. Escutei o homem que engrenava o evento. De voz mansa, como um padre germânico, louvou a família e suas escalações, esquecendo-se talvez acidentalmente, das possibilidades reconstituídas, homoparentais, homosexuais, inférteis, informais e dessemelhantes. Enaltecíamos, portanto, a tranquilidade de uma linhagem anacrônica, cautelosa quanto às contingências humanas. Éramos o retrato daquele auditório. O discurso adequava-se magistralmente à realidade daquelas crianças. Não poderíamos proclamar a fantasia, poetizar a existência e falar a língua das borboletas, para as formigas. Jamais entenderiam. 

Olhei para trás e estavam todos mortos. Eram cadáveres inanimados que esperavam pelo fim daquela festa. Que almejavam o sossego de suas casas, num país ainda pandêmico, isolado e selvagem. Sem máscaras, estávamos seguros pelas muralhas da escola, e ainda tínhamos de prestigiar o talento dos alunos, que subiam ao palco para executar canções decoradas. Cabisbaixos ao violão ou ao piano, expressavam sua macilenta existência, e cantavam a insuficiência daquele ambiente. Púberes e curiosos, que precisamente cabiam naquele educandário. Seus mestres eram homens e mulheres brancas, casados e constituintes de uma respeitável categoria. Capazes e indicados para ensinar aos pequenos os mistérios da química, os valores humanos e a impecabilidade da aritmética. Bhaskaras, cinemáticas e condutas. Tudo ali, descosturando a humanidade latente de jovens sujeitos. A Tábula Rasa, de Aristóteles, preenchida pela negação da realidade cultural. Entulhada pela insuficiência da diversidade, e enfeitada pela intimidade com o análogo, nunca com o oposto e o dessemelhante. Aqui todos são iguais. Buscamos identidade, conformidade. E mesmo que em profissões diferentes, concursados ou empreendedores, carregamos a palavra de Cristo e a poderosa branquitude endinheirada. 

Queremos que nossos filhos conheçam o país, mas não tanto. Não havemos de conglomerar e confundir. Uma rápida passada pelas revoltas e lutas populares, um professor de história que pareça diferente e alguns atos caridosos, livra-nos de um cálido e impiedoso inferno. Tamoios, Palmares, Mascates e Malês. Balaiada, Sabinada, Praieira e Cabanada, era tudo tão longe. Tudo tão passado. 

As escolas particulares são covis. Fantasmas desnorteados em meio ao camelódromo da realidade. Vencidas e convencidas por um país iníquo, que persiste numa danosa segregação. Preparatórias aos vestibulares e concursos, aeroportos, bistrôs e condomínios. Jamais à veracidade cultural, étnica e política. Em tempo algum à diversidade sexual, e à integração dos discordantes e desiguais. Somos a massa do mesmo bolo, a água do mesmo copo. E ninguém anda bebendo-nos. Não hidratamos mais nem a nós mesmos.

domingo, março 06, 2022

Música e literatura. Aqui estão os meus narcóticos. Antálgicos paliativos, como Dipironas e Tylenóis. A primeira dá-me o sustento costumeiro, enquanto pela segunda, conservo somente a certeza em cometê-la de maneira mais exuberante, potente e talvez, elegante. Mas o que há de ser elegante na desordem arranjada de minhas fabricações? Pudera esperar atenção às edificações pronominais e aos ornados clamores de minhas ficções? Jamais. E respondo com indubitabilidade adolescente, posto que já não é possível atrair um olhar atento. Manuscritos, poemas e tratados, por mais rudimentares e mal-acabados, exigem o ser desobstruído, transitável e metafísico. Impõe organismos cobiçosos, ávidos monstros seduzidos pelo outro. Pelo sangue ou pelo gozo. 


A lógica traiçoeira do neoliberalismo, em atada promiscuidade com a glória da solidão, torna a necessidade da vitória ainda mais imprescindível. A repressão não vem mais de fora, e não sabemos mais contra quem revolucionar. Não há bandeira que nos valide, então balançamos bandeiras que não agitam, num estúpido processo de mitose. Nascemos de nós mesmos e resultamos em proporcionalidade, isonomia. Não pode mais haver satisfação e deleite na derrota do estranhamento, na imprudência do fracasso e na simplicidade da fraqueza. 


Culminamos portanto na autocracia do Coaching, no absolutismo da autovalorização, mesmo que isso signifique a humilhação da linguagem, a escassez imaginativa e o pior: a segurança de princípios, valores e condutas. O idiota só é realmente idiota quando passa a ter certeza de suas idiotices. E passa a ser nocivo quando as compartilha publicamente, na ilusão de ter alguma influência no corpo social. O imbecil torna-se então, comum. O indivíduo contemporâneo, que é capaz, efetivo, profundo e significativo. Somos o anti-niilismo, que como mágica, abandona o pessimismo de Cioran, a ânsia de Kierkegaard, e embarca sonâmbulo na distribuição de performances, de feições, imagens e dissimulações.


Não estamos próximos do suicídio. Somos o próprio suicídio. Aniquilamos a desinformação e suprimimos o ócio, num ócio furtivo, confeitado com os arabescos da sabedoria, com as louçanias da realização. Já não pode haver nada brusco, ousado e escandaloso, e cada passo é analisado com a lupa leviana de uma patrulha política, que já nem sabe o que significa o que. 


Estamos enrolando a merda de nosso cachorro num saquinho. E já nem enxergamos mais a merda. Já não somos capazes de contemplar nada que não seja plástico, limpo e engajado. 


Que saudade de enfiar os sapatos na merda.

Pusemos também o amor em seguridade, e se pudéssemos, teceríamos apólices que o garantissem ilibado, intocável pelas indomáveis ameaças da efervescência humana. Por entre partidárias descrições em aplicativos de relacionamento, memes e tolas diretrizes fabricadas por mentores e inspiradores digitais, o amor é logaritmo, lógico, coeso e lápide. Lousa tumular como fim de epopéia. Um cansaço inevitável como o ápice de um Himalaia. Prescrições, ordens e condições, como se pudéssemos escapulir do acaso, fugir dos quiçás e dominar os infortúnios. Como se propuséssemos o fim da psicanálise e aspirássemos, contemporâneos, as líquidas e metódicas resoluções.


O Eros de Platão, como disposição primordial, limitando o amor ao tempo. Sadio e robusto desejo que, quando realizado, deixa de existir. O desaparecimento do ser amado, ao primeiro sinal de uma concretização. O velho lugar-comum de um ser humano que cobiça permanentemente o que não possui. E ao possuir, procura imediatamente o incógnito, estrangeiro, o que é invicto de sua retenção. Depois o Filos de Aristóteles, que parece-nos também apalmado, e tão rasteiro ao chão que deposita na alegria, o alicerce do amor. A escassez do deleite, da animação, prontamente fantasia o amor com as vestes merencórias da indiferença, como se a vontade e o empenho em perpetuar o sentimento, fossem vulneráveis e derrotáveis pelo momento infeliz.


Há de se respirar. E afinal compreender que a filosofia talvez tenha sufocado o amor como quem tenta traduzir poesia. Como quem pretende compreendê-la. Como quem possui vertiginosas soluções aos questionamentos da arte, e como quem explica a expressão humana em breves e convictos discursos. Requintado e elegante talvez seria assumir a posição de um descolado Nietzsche, quando considera a célebre passagem de "O Banquete", onde os deuses castigaram-nos, e dividiram-nos para que vivêssemos de falta e carência, tentando encontrar a metade que nos faltava. O sábio e afamado bigodudo, postulava o amor como dependente de uma capacidade de autocompletude e autoafirmação. Apenas indivíduos plenos de si podem amar, e não seria, portanto, o amor, mais do que um derramamento. Uma espécie de luxo e de dádiva daquilo que cada criatura conquistou por si e para si. O amor seria desejo de partilhar a própria vitória. O ato de repartir o sucesso, o equilíbrio e a notabilidade. 


Mesmo muito distantes das filosofias prussianas do Século XIX, as ruas, galpões e até mesmo o Instagram e seus desvairados, parecem adotar o pensamento descrito. Ocultam e esquecem propositadamente a insciência do amor. O que lhe torna poesia e nunca gnose, conhecimento. Repartir a ânsia, e esquecê-la com a esperança. Desabar pelo esbarro na ilusão e levantar-se pelos corrimões de uma ainda incerta e púbere confiança. Acreditar nos deuses da esquina e escutar os mantras que transportam-nos para o fundo de um oceano escuro. Não há cães, gatos ou bolinhos de chuva. O amor é assustador, e tem de ser, como o poema. É um drible no tempo, que esborracha os relógios e repinta todas as paredes. Como se pode prever a incerteza, se até sua previsão é incerta? Schopenhauer e sua indelicadeza, Voltaire e seus enfeites, Sófocles e a ingênua noção de que o amor liberta as dores da alma, Hollywood com sua miserável e inoportuna mensagem romântica…


Quanto temos maltratado o amor. Quanto o temos achatado por condições e análises. Havemos de reconsiderar, e talvez elevá-lo ao patamar que merece. Puséssemos o amor como bicho, e quiçá teríamos estudos demasiados. Cartilhas escolares e questões de vestibular. Se o considerássemos sonoridade, milhares o avaliariam, manifestando desagrados auditivos. Quem sabe se o amor virasse comida? Não. Com os reality shows, especialistas o provariam e decidiriam ali, arrogantemente, se presta ou não. O que lhe falta. 


Que deixemos o amor sem intromissões. Façamos logo dele bigode de sapo. E não se fala mais nisso.



terça-feira, setembro 28, 2021

O quase morte

Retirei a vesícula.

Estou na sala de recuperação. Coisa branca, inóspita.

Monitorando por alguns bipes, trouxeram logo o item de sobrevivência mais importante do século: um Samsung branco cheio de aplicativos, pertencente a mim.


A vesícula é como o Sérgio Mallandro. Até tem lá sua utilidade durante um tempo. Mas quando começa a incomodar... Tem que extirpar pra sempre.


Simples procedimento de não mais do que trinta minutos. Meu avô, quando operado, saiu da sala de cirurgia direto pro T3. No mesmo dia estava em casa assistindo à realidade crua do Cidade Alerta, com o Datena. Talvez fosse melhor a vesícula. 


Meu caso foi um pouco diferente. Uma arritmia pós cirúrgica me manteve por aqui. Em época de pandemia, a pernoite no hospital é como descobrir que casou sem querer com o Goleiro Bruno. E que está pedindo divórcio e pensão.


Dez médicos na volta, e o diabo da Adenosina. Medicação na seringa, duas vezes espetada em mim, a fim de que voltasse o coração ao ritmo corriqueiro.

Há na morte um túnel iluminado, no qual pouco se pode enxergar. A luz deixa os olhos miúdos, mas atentos. Disse algumas tolices, resultantes da anestesia. Não que as evitasse em estado normal. Os médicos riram, todavia nervosos. O humor é um belo termômetro para sabermos quais as chances de sobrevivermos, e enfrentarmos mais um  Natal no shopping lotado, ou irmos à Brasília numa manifestação pelo fechamento do STF, e pelo Legalize da Cloroquina.

Eu quase pedi o tônico Bolsonarista aos médicos. Vai que pudesse me salvar naquela altura. 


Mas cá estou. Desperto e com batimentos sólidos, já na casa dos oitenta e poucos por minuto. Ainda na sala de recuperação, cercado de enfermeiros cordiais, amáveis e competentes. Sobe-me à boca um enjoo decorrente do suco de maçã. E fica a vontade de ir pra casa. Não a dos anjos. A minha mesmo.

quinta-feira, setembro 16, 2021

E fora do storie?

 Fora dos Stories, você está bem?


Há de se considerar valiosas as palavras da teologia. Vindas ou não do próprio cristianismo, com Agostinho, Boécio ou os profetas, o ensinamento cristão resiste e coordena parte de nossa vontade e força vital. Mas jamais esqueci uma considerável frase de Maquiavel em O Príncipe: "O tempo lança à frente as coisas e pode transformar o bem em mal e o mal em bem". O filósofo italiano que defendia a bondade, a caridade e a moral como essenciais atributos do líder político, talvez previsse que a positividade e a quebradiça confiança de nossa geração, virasse em pouco tempo, estupidez. Alguns anos de psicanálise, filosofia, vastas ferramentas estóicas e, mesmo assim, esbarramos na mais rasteira auto-ajuda que já existiu. Afunda Dale Carnegie, surgem as páginas de frases motivacionais, e piadinhas com indiretas. Acertadamente dissipam-se Augusto Cury e Lair Ribeiro, dando espaço aos stories de Instagram e ao "Arte Sutil de Ligar o Foda-se". 


Não há como classificar o ser-humano afastado de sua rede social, tampouco do que nela exibe, ou do que nela usufrui. Somos os indignados digitais, que muito pouco agimos e criamos. Constituímos uma nova espécie de Homo Sapiens. A realização do indivíduo é a auto exploração e não mais a aventura alheia ao próprio corpo e mente. Somos "memes", que exalam solidão até mesmo quando acompanhados. Na mesa do restaurante, na lancha, com os cães no parque ou no meio da festa, somos a afirmação da completude que jamais teremos. E assim carregamos até anedotas sobre nossos defeitos, de maneira que representemos consciência e facilidade em revelar e conviver com as próprias fraquezas e imperfeições. Trapaça. Deteriorada estratégia da propaganda. Esperteza receosa e covarde, como mentir à terapeuta que o carro enguiçou, burlando a consulta.  


Demonstramos e induzimos a nós mesmos que somos muito pouco fracos, e aceitamos esquecer os nossos super poderes humanos: a apatia, a vulnerabilidade, o inconsciente e a fragilidade. O relacionamento, exempli gratia, tenta safar-se de uma colcha rochosa, lotada de bordões, chavões e estereótipos. A dissimulada robustez da alma e da razão, assalta de modo travesso o arrebatamento das paixões e a inconsistência dos sentimentos e ações, que tornam a confluência de dois amantes, algo vivo, irrequieto e desmedido. Há sentenças inabaláveis e convicções assentadas, numa campanha dramática de que conhecemos quem somos, e de que admiramos nossa maturidade e equilíbrio. Manifestamos ironias, anunciamos segurança e compartilhamos chacotas, de modo que todo suplício humano, cheire como perícia, autoconfiança. 


Afastamo-nos aqui do velho lugar-comum: Nas redes somos felizes o tempo todo. Fora dos Stories, não estamos tristes. Fora dos Stories estamos bem piores. O "empoderamento" a que fomos coagidos, reduz-nos a decoradores do mundo. Afasta-nos a tristeza causante, impulsionadora. Afugenta-nos desprovidos do verdadeiro abatimento, que empurra-nos ao dia seguinte como arte, e retira-nos o feitiço da poesia. Somos práticos, sensatos e atinados. Fingimos confiar no amor a nós mesmos, assim como há tempos fingimos preocupação com guerras civis do outro lado do planeta. Direcionamos ao próprio umbigo a mira de nossa falácia armada. E alvejamos cada vez mais nossa naturalidade depravada, insana, corrupta, utópica e sonhadora. Perdemo-nos de Nietzsche e perseguimos o Übermensch errado. Quem dera estivéssemos tristes. Fora dos Stories estamos arruinados. 


Jonas Lewis da Costa Franco

terça-feira, maio 04, 2021

Paulo Gustavo

 PAULO GUSTAVO 


Acordar é tomar uma lição. E mesmo que nos encurrale o tédio ou o relaxamento, aprender é sempre válida possibilidade. Talvez hoje o Brasil aprenda alguma coisa. Talvez desmereça, como há séculos temos feito. A morte, a tortura e a miséria, parecem-nos inquilinos insistentes, que permanecem habitando nosso ordinário cotidiano brasileiro. 


Confesso lastimoso que o humor de Paulo Gustavo nunca me conquistou. É coisa de sonoridade, de texto. Quase como música. Puro engenho do destino, da afinidade. Uma armadilha, talvez. Mas o queria vivo, fértil, hilário e feliz. O queria zelando por sua família e por seus amigos, que de primeira impressão, quase não suportam sua morte. Fato que cabe, merecidamente, aos justos, honestos e iluminados. Paulo era, nitidamente, a presença da alegria, do sucesso e do sorriso explícito, desses que escapam ao rosto, como respiro.


Paulo era também homossexual. E aqui volto ao tema do aprendizado. A quem distingue o amor e a dor humana por gênero, raça ou peso, que a morte implacável e injusta desse pai e mãe de família, sirva como dimensão. A angústia é voraz. O drama é sempre faminto, assim como o afeto e como a paixão. Devora de maneira idêntica a todos. Tal como destrói o homem, destrói a mulher, e tal como devasta o cristão, devasta o incrédulo. O amor é uma emboscada. Uma graciosa emboscada capaz de juntar dois homens para sempre. Capaz de criar filhos, de arrumar a casa, de pendurar os quadros. O fascínio de um pelo outro, e a sensação de jamais querer fugir dali. Amar é ser. É levantar da cama. 


Que o Brasil escute o choro dos que amam. E que o amor importe, tomando o lugar de condições, normas, preceitos e mandamentos. Que aprenda a venerar quem cuida, e não quem desdenha. E que politicamente, possamos incluir a delicadeza em nossas exigências. Paulo não precisava morrer. Foi vítima de um sistema grosseiro, incapaz de tomar lições e festejado por indivíduos afetivamente comprometidos. Humanamente aleijados. Paulo foi corajoso. Na UTI, no altar, como pai, mãe e amigo. E em seu testamento nos deixa mais uma oportunidade. 


E quando escutarmos alguém aclamando a economia, reverenciando torturas e divulgando inócuos medicamentos, possamos lembrar de quem sufocou. De quem se foi. E de quem somente com a morte, livrou-se de um mundo arbitrário, descuidado e desatento ao que realmente importa: amar.


A gente ama Paulo Gustavo.

quarta-feira, março 03, 2021

Eu quero ir, minha gente

Eu não sou daqui

Eu não tenho nada

Quero ver Catarina e Ana Luiza rirem.

Quero ver Catarina e Ana Luiza

darem suas risadas


Por entre o itinerário da vida, fizeram-me assim algumas mulheres. Fêmeos verões e invernos feminais, talvez tenham-me presenteado com a assiduidade afetiva e graciosa de grandes avós, audaciosa mãe, inspiradoras irmãs e encantadoras amantes. Não as esqueço por um minuto. O toque de suas mãos e o inconfundível aprimoramento com que sua feminilidade decorava meu requisito evidente e descomplicado: ter nascido um garoto. Inteligível e espontâneo, parece que aos meninos, também de forma arbitrária e tirânica, sobra a simplicidade de uma existência masculina. Corriqueiramente masculina. Encarregar-se de certa praticidade e pouco das aflições da alma. Ocupar-se da sisudez e raramente da poesia. Atender ao instinto e desaprender o afeto, segregar a delicadeza. 


O hábito de viver sem perceber à volta, pode esconder epidemias talvez mais violentas e avassaladoras do que um vírus. O fruto da imperícia afetiva ou da masculinidade confusa, que já nem sabe mais o que fazer frente aos próprios desalinhos, é nitidamente o princípio de uma geração abalada. Mulheres maduras, moças e garotas, traumatizadas por vínculos e relações inseguras, maternais, abusivas, violentas ou fracas. A crise sentimental e cultural do homem é agente imprescindível para que uma multidão de mulheres esbarre em vândalas paixões, devastadores envolvimentos e laços perturbadores. O medo de uma nova investida, a hesitação patológica em um novo romance, e por vezes, a desistência de construir aquilo que nós humanos, tanto amamos. Comer, rezar e amar… Não necessariamente nessa ordem, torna-se atividade incerta, suspeita e arriscada. O que se pode comer? De que forma devemos rezar? E o mais comovente: será que amar não é perigoso demais? 


Notoriamente sobra a algumas mulheres a capacidade de abstrair. Qualquer sensatez lotada de maturidade, capaz de deixá-las soberanas, desamarradas e disponíveis ao amor e ao gozo. O beijo que talvez não signifique ameaça, e o convite que tampouco pareça a fenda para um forte e estúpido golpe. Mas não havemos aqui de julgar ou categorizar personalidades e, principalmente louváveis técnicas de assimilar abusos e lágrimas. Mulheres são diferentes. Assim como as pedras. Assim como as mariposas. Somos incompetências e talentos, desgraças e glórias, noites e dias. Jamais sobreviveríamos se a existência nos desse a placidez e a mansidão de uma calma inanimada. O que parece gritante é que a mesma geração comprometida com mudanças necessárias e consciente de uma renovação humana, degusta durante boa parte da vida, o impacto e o trauma de uma relação vexatória, solitária, desonesta ou enganosa. 


Das mulheres que me tiram o sono, duas são garotas felizes, lindas e mágicas. Ana Luiza e Catarina querem amar, e não querem traumas. Que jamais o mundo lhes proteja dos infortúnios, das decepções e das lágrimas. Reles foi o que aprendi sorrindo. Que suas vidas estejam em perfeito equilíbrio entre o caos do pensamento, as dores da existência e a explosão dos orgasmos e dos sorrisos que não cessam. Mas que pela imprudência da boçalidade e pela maldade do egoísmo viril, jamais deixem de querer florir as paixões e entregar-se ao amor, por medo de um certeiro sofrimento trivial. 


Que até os galhos possam mudar. Que tampouco as pedras permaneçam iguais. Mas que, principalmente, os homens compreendam sua vergonhosa fragilidade. Os tempos não parecem propícios, e a brutalidade nos sufoca a cada despertar do relógio. O homem é cada dia mais tolo. E a cada dia parece orgulhar-se mais de sua tolice. 


Por Ana Luiza, por Catarina, por todas as mulheres, e pasmem, por nós homens: "quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória, mudando como um deus o curso da história. Por causa da mulher"

sábado, janeiro 30, 2021

"Eu organizo o movimento. Eu oriento o carnaval."

 São as palavras de Caetano em "Tropicália". Música que dá nome ao arrebatador e impetuoso movimento que abalou o país entre 67 e 68. Gal, Tom Zé e o maestro Rogério Duprat. Nara Leão, Torquato Neto e também o compositor e poeta Rogério Duarte. As distorcidas guitarras e a psicodelia invadiam o barquinho bucólico da Bossa Nova, desvitalizando as posições tradicionais e o conservadorismo nacionalista que sempre dominou a música popular brasileira. De primeiro, não há de se considerar a sonoridade, os arranjos, tampouco a linguagem. Responsabilizemos primordialmente a arruaça, a desordem, e uma tendência terrorista de exposição artística. A disparada inabalável pra cima de um muro robusto e consistente, como se derrubar os tijolos fosse a única saída possível para um cenário ocioso, acomodado. Eis o motivo da arte. A subversão e a concepção de um novo encadeamento. Nova gramática para que não bata as botas o idioma, e novas rodovias para que não renuncie o artista à sua incontível viagem. A arte é extremista e mesmo que delicada, graciosa e parnasiana, consigo carrega o poder de fragmentar, danificar e principalmente, infringir. Parece-me que quando não desvia, quando não devasta, é pura repetição de técnica, aperfeiçoamento, exercício. A arte tem de resplandecer. Desorganizar e transtornar para recompor.

A Tropicália foi nova, curiosa e original a ponto de articular a nação. Monstros sagrados da composição e da literatura, vozes irregulares e divergentes, frente ao país que engolia calado e assustado suas exigências. As letras palavreavam com Oswald de Andrade e outros poetas concretistas, elevando as frases que simplesmente acompanhavam melodias à verdadeiras conjunções intelectuais de um Brasil arcaico com um país moderno, querendo abraçar o mundo vestindo colorido e pensando em discos voadores.
Havia sexo, corpo e liberdade. Mas havia também a repressão e a própria identidade ainda moderada de um ambiente ameaçado. Che era executado na Bolívia, Costa e Silva assumia em março de 67 e o país elaborava uma inexperiente maneira de lidar com a expressão, com a manifestação e com a criação.

Caetano e Gil, célebres e afamados merecidamente, parecem ter dado o primeiro grande passo. E desconsiderando talvez outros gênios menos prestigiados e influentes como Arrigo, Macalé, Itamar Assumpção e os Mulheres Negras, a MPB foi pautada por um conservadorismo anti conservador. A liberdade que libertava das grades mas jamais das correntes. Marchamos atados por muito tempo, e ainda relutamos em compreender que os anos 60 no Brasil, foram menos antiquados do que os 50, mas muito menos revolucionários, radicais e ousados do que nossas capacidades e contingências permitiriam.

A MPB jamais foi obsoleta, e talvez tenhamos sido abençoados a receber Chico, Djavan, Jamelão e Paulinho da Viola. Milton, Caymmi, Baden e até popularescos e difundidos como Lulu, Tim Maia e Guilherme Arantes. Todos com deslumbrante participação em uma música nova, tenra e original. Por vezes brilhante, genial e inigualável.
Sempre conservadora. Sempre tradicional. Não foi regressista e impositiva, cruel e inanimada, mas foi cautelosa e filosoficamente comportada.

E não parece ter vindo do Jota Quest a intenção de quebrar alguma parede. Os Paralamas não arruinaram a moral e a cena Indie dos festivais nunca desorganizou a lógica. Os bravos Titãs foram destemidos e feriram a religião com a porrada "Igreja". O Camisa de Vênus assustou com o nome, com a sonoridade e com frases pujantes e descaradas. Mas quem "organiza o movimento, e quem orienta o carnaval", é o Funk. Assimilado na rotina do jovem brasileiro, o funk é maldito por natureza. Ofensivo como a humanidade, impiedoso como a existência e indecente como nosso pensamento, o produto das favelas invadiu o mundo, revelando a insanidade de nossa relação com o crime, o sexo, a mulher, o dinheiro e a fama. Do batuque marcante do Maculelê, ritmo originário da Bahia, com forte influência de uma África escravizada, o funk incorporou os atabaques e tambores, ganhando o espaço em qualquer festa realizada no país.

Iletrados garotos desprotegidos fazem o país curvar-se diante de dissonâncias e psicodelias. Não há música no país que carregue tantas características contemporâneas e principalmente livres. The Doors, Emerson Lake and Palmer, Kraftwerk, Triumvirat, Beatles, todos dividiam a mesma particularidade: eram desobrigados e inconsequentes. Irresponsavelmente belos e descompromissados com estéticas criteriosas e normas técnicas. Há no funk desses garotos a audácia social de um país abandonado. São insolentes quanto à burguesia, mesmo que a burguesia consuma suas criações em festas regadas à Champagne e maquiagens Guerlain. Sua poesia é também concretista, e depois de 50 anos, parece haver soberania e licença para flutuar a palavra, e atingir em cheio a ofensa, a obscenidade e a blasfêmia. Por vezes infratores e delinquentes, infames e perversos, como nenhum Caetano ou Gil ousou parecer. O funk arqueia as costas do conservadorismo e incomoda a velha e enfadonha esquerda politicamente correta, que tenta combater desprovida de armamento efetivo, a verdade latente das letras selvagens e despretensiosas. O funk chicoteia a velha moral. E mostra ao mundo, que assim como o mal falado Rock'n Roll e o marginalizado Samba, quando cria-se algo perigoso, toda sociedade arregala os olhos e aponta valendo-se de argumentos falaciosos, como pobreza linguística, carência de harmonia, falta de estudo ou erudição.

Tenho algo a dizer: há mais de Heidegger, Wittgenstein, Freud e Foucault no funk, do que em suas estantes de livros posicionadas atrás da câmera para compor o cenário de suas reuniões no home office. Há mais liberdade feminina, Angela Davis, Maria Rita Kehl e Simone de Beauvoir no funk do que em encontros universitários ou discussões no almoço da firma com sua colega engajada no movimento feminista (Não que ela não deva ser escutada). Há mais riqueza musical e inventividade rítmica no funk do que em todas as bandas barulhentas de rock da sua cidade.

O Funk é o túmulo da acomodação. A continuação perversa e necessariamente pornográfica da Bossa Nova. Um sopro de Henry Miller num mundo fantasiado de auto ajuda e espiritualidade arenosa.


sexta-feira, janeiro 15, 2021

Anitta, Neymar e o fracasso da arte

O “menino” Neymar é amigo de Luciano Huck. Não do Hang, do Huck. Mas bem que não me surpreenderia uma estátua da Havan em frente à festa imoral do garoto. Camarada de Gabriel Medina, Thiaguinho, e de outros enfadonhos e limitados “parças”, Neymar é o arquétipo de um arruinado Brasil. O embaixador de uma geração cansada e cansativa. O arauto de homens e mulheres que esquivam-se temporariamente da casa dos pais, e em meio à cruel e mortífera pandemia, passam o fim de ano em Jurerê Internacional, num deck frente à praia, escutando Dj Alok, saboreando sublimes Skol Beats e contraindo o vírus, que em seguida levará familiares e desconhecidos a UTIs em situação preocupante. De que importa afinal o honesto, o virtuoso, o justo, se nada disso dá boas postagens no Instagram? 

 

O documentário de Anitta na Netflix é magistral. Antropologicamente magistral, se o caso é compreender um mundo inconsistente, ralo, aguado. E talvez, principalmente, um Brasil repulsivo, pretensioso e histérico. Anitta comanda uma trupe de parentes, agentes e empregados, a quem dedica tratamento altaneiro, arrogante e grosseiro. Sempre com a escusa de uma pressão profissional, de uma personalidade centralizadora e de uma imensa vontade de que tudo aconteça com perfeição. 

 

Anitta é amiga de Neymar. Neymar talvez tenha comido Anitta. Que por sua vez, insiste em declarar sua independência e liberdade sexual a cada dez segundos de documentário. O calabouço quando ainda assusta, faz o enclausurado declarar-se feliz e liberto. A dissimulada soberania sexual de Anitta é como as malas Louis Vuitton de Neymar, quando chega com a delegação para a partida. Seus fones, e sua malandra caminhada até o vestiário, celebram a cafonice dos apartamentos em Camboriú, das férias em Aspen, e do tal deck atolado de bombados e gostosas covidentas, fotografando a angustiante existência em Jurerê Internacional. A morte do futebol e da música. 

 

A inspiração é um cadáver, e a instrumentalização humana é gelatinosa, precária. Consegue o curioso fato de não depositar em mim tampouco a ávida inveja de uma vida de luxos, badalação e dinheiro para dar e distribuir.

 

Anitta e Neymar deveriam casar-se. Rei e rainha numa possível monarquia desse país infundado e indelicado. Em Janeiro teremos novos defuntos. Alguns vítimas dos netos e filhos que retornaram do Reveillón festivo, e outros, os de sempre, ainda vivos, como Neymar, Anitta e seus “parças”. Lotados de uma vida desabitada, e entorpecidos pelo vício letal das aparências.

Sexo, propaganda e plástico

Quem me conhece, sabe. Sou um incorrigível amante das particularizações da indústria. Daquilo que vem logo abaixo da alcunha, da marca. A frase ou qualificação que diferencia um produto do outro. Que faz um reles xampú tornar-se um "reconstrutor completo, sem parabenos e com micro cristais de pró-queratina". A poesia da marca. O sofisma publicitário, que categoriza o produto como especial, singular e hiper-direcionado às causas específicas, aos esmiuçados problemas e situações. O subterfúgio, a enganação e a tramóia ardilosa que aconchega o ávido consumidor às suas pueris necessidades.


Hidratantes corporais e cremes esfoliantes. Géis, capilares, fixadores, antibacterianos e finalizadores. Pré-banho, pós-banho, durante o banho e enriquecidos com óleos essenciais de andiroba, que garantem a maciez natural da pele, atingindo camadas mais profundas e garantindo resultado por mais de 48 horas. Com ácido, sem álcool e rico em proteínas da aveia. Cereja, avelã, chá verde, pitaya e urucum, todos enriquecem o frasco, num estratagema confuso, que supõe o desconhecimento do consumidor, e a perturbada confiança quase cega em uma fraudulenta especificação.


Nessa semana, em meio à enfadonha pandemia, atentei-me na drogaria ao espaço reservado aos preservativos. Camisas-de-Vênus, camisinhas, chame como desejar, não há talvez grupo mais subdividido e extraordinário para um apaixonado como eu. Essa desumana borracha, que apesar de necessária, e por vezes, imprescindível, escuda e ampara desgostosamente as trepadas que por aí sucedem, é artigo de luxo quando se trata de qualificações e especificações. Afora dos sabores que o látex tem oferecido às sedentas bocas, vulvas e cus, historicamente sem paladar, milhares de tecnologias obscuras são concedidas na prateleira mais impudica da farmácia.


Morango, framboesa e amora. As frutas vermelhas já são eruditas, clássicas coadjuvantes das categorizações. Chocolate, uva, melancia e tutti-frutti, relembram instintivamente os carrinhos da Kibon na beira da praia. Como numa regressão à mais pretérita meninez, a camisinha era agora um ChicaBon, um erótico Frutilly. E como são fecundas as possibilidades, avistei um pouco mais abaixo os sabores "Café, "Caipirinha" e "Churros". Um passeio pelo shopping, a visita de um velho amigo ou aquela conversa séria no meio da tarde, que pede o safanão da cafeína para que a alma possa assimilar o ocorrido. O café invade com elegância o sexo. Ou então o boteco, o samba e as cabrochas, pedem uma caipirinha gelada. Drinque genuinamente brasiliano, que pode remeter o coito às Minas Gerais ou a um suburbano Rio de Janeiro. Deveria-se recomendar na embalagem, talvez, a aquisição de alguns bolinhos de bacalhau, para que a experiência torne-se ainda mais intensa.


O "Churros" merece um capítulo à parte. E admira-me que ainda não tenham surgido as variações que a própria iguaria ganhou ao longo dos anos. Fálico, segundo Freud, o terceiro estágio do desenvolvimento psicossexual, em minha época de garoto o churros era devorado ereto. Vertia pelo topo um doce de leite ardente, que por vezes, caía na roupa, deixando nela um borrão característico. Hoje ele cansou. Deitou-se e recebeu um cobertor de Nutella e confeitos. Esqueceram-se da importância humana daquele semi-boquete que pratiquei durante anos nas ruas de Cidreira. Quantas camisetas amareladas, quantas queimaduras no beiço. Pois bem, o churros agora invadia verdadeiramente o sexo. Preocupava-me sobremaneira o modo como era servida a sobremesa, pois é certo que, se no preservativo viesse também o açúcar cristal e a canela, certamente machucaria com cruéis assaduras um dos envolvidos na transa. O atrito deveria ser uma preocupação, nesse caso.


Maçã-Verde, abacaxi e laranja, as camisinhas viraram uma feira. Mas as especificações técnicas também são grandiosos artifícios, que transformam o ato de agasalhar o órgão sexual em uma ousada peripécia. Texturas e tamanhos, temperaturas e poderes mágicos, essa mercadização afronta os limites da lógica e apresenta-nos inimagináveis possibilidades.


Extra-Grande (tamanho que felizmente nunca julguei a mim adequado), e termos ianques como " Skin Sexy Cherry", que além do gosto de cereja, promete a sensação de não estar usando nada, como se negasse o próprio conforto, atestando que seus produtos são uma "encheção de saco". Ou mais apropriado, uma "esvaziação" do mesmo.

Efeito fluorescente e neon, para que talvez o sexo pareça uma festa rave. Sempre tive a esperança de que brilhasse o membro no escuro, e que dessa maneira, não o perdesse numa troca rápida de posição. "Efeito Retardante"! Essa me causa um medo absoluto. O título é confuso e faz parecer que ao colocar o preservativo, começarei a idolatrar vídeos do Olavo de Carvalho e fazer sinal de "arminha" com as mãos. Além de terminar a transa com um austero:

- "Gozei, aí! Taoquêi?"


Sensitive Touch, textura que aumenta o prazer feminino, ponta com formato oval, efeito "Fire and Ice", que altera entre o quente e o frio como chuveiro elétrico de casa alugada na praia. "Elite", que talvez seja indicado ao pessoal que anda de camionete ou Mini Cooper, "Latex Free", para os pobres alérgicos, que até na cópula correm o risco de um fechamento de glote, e o incrível L9P6, que parece nome de personagem do Star Wars, mas é simplesmente uma tecnologia que ninguém sabe pra que serve, e nem o resultado.


O que importa, no fim das contas, é gozar. Mesmo que paguemos um pouco mais. E saber que a camisinha feminina, foi a pior ideia já tida por alguém, depois é claro, dos shows em Drive-In e do Cream Cheese no Temaki.